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Estátua

Foto do escritor: Ascom/CogepeAscom/Cogepe

A nota triste que inspira esta crônica vem do Recife. Na madrugada de segunda-feira (21/9), a estátua de Ariano Suassuna foi arrancada da sua base por vândalos. A cena resultante do ato é revoltante. O consagrado escritor em bronze atirado ao chão de pedras. Ele estava em decúbito ventral e com os braços cruzados nas costas, lembrando uma execução. De fato, ali estava representada a morte violenta da cultura brasileira. Talvez, os autores do atentado desconhecessem o legado literário e humano da sua vítima, quem sabe nunca tenham lido uma linha sequer do clássico O Auto da Compadecida ou recitado versos como: “Sem lei nem Rei, me vi arremessado bem menino a um Planalto pedregoso”. A estátua de Ariano não foi a primeira e nem será a última a sofrer com a depredação.

Em Percalços da Posteridade, o poeta Mário Quintana demonstra seu desconforto com a recorrente prática de esculpir estátuas para fazer homenagens. “O mais irritante em nos transformarem um dia em estátuas é que a gente não pode coçar-se”. Quintana não escapou da mão habilidosa de Xico Stockinger, e acabou eternizado em bronze. Ele está sentado em um banco da Praça da Alfândega, em Porto Alegre, acompanhado de Carlos Drummond de Andrade, em pé ao seu lado com um livro nas mãos. Em mais de uma ocasião, ambos foram alvos da insanidade destrutiva dos bárbaros. O livro, por exemplo, foi levado das mãos do poeta mineiro já acostumado aos furtos. No calçadão de Copacabana, onde Drummond está sentado de costas para o mar, os ladrões roubaram pelo menos uma dezena de vezes seus óculos. A estátua do sambista Noel Rosa, localizada no bairro de Vila Isabel, é outra que sofre com a ação da bandidagem. Em 2019, os ladrões levaram o garçom e a mesa com a cerveja que completavam a obra. Eu imagino o quanto deve ser sofrido para o Poeta da Vila permanecer ali sentado sem a companhia da sua cerveja Cascatinha servida pelo fiel companheiro que inspirou o samba Conversa de Botequim.

Recentemente, em diferentes cidades do país, muitas estátuas ganharam um acessório fundamental em tempos de pandemia: a máscara de pano. Eu volto novamente a Porto Alegre para relatar outro ato de desrespeito não somente à estátua, mas à saúde pública. Nesta semana, o Laçador, escultura símbolo da capital dos gaúchos, recebeu seu pedaço de pano. Em menos de 24 horas, um iconoclasta subtraiu o tecido e junto com ele a mensagem de prevenção contra o coronavírus. Eu posso apostar que o autor da façanha não usa máscara ou deixa o nariz para fora quando está com uma.

Mas as estátuas também podem desfrutar da merecida paz e servirem tão somente para apreciação, respeito à memória e local de descanso para pássaros. É o caso das estátuas e bustos que se espalham pelo campus de Manguinhos. O trio mais famoso está alinhado em frente ao Castelo Mourisco. Quem chega à Fiocruz pela Avenida Brasil é recepcionado por um Sérgio Arouca dando as boas-vindas com a mão esquerda. A estátua foi esculpida em tamanho real por Otto Laun Dumovich e inaugurada em 2005. Uma amiga conta que ao chegar pela primeira vez no campus, e se deparar com a estátua de Arouca, tirou uma selfie e postou em suas redes sociais identificando-a como se fosse de Oswaldo Cruz. Um tempo depois, ela descobriu seu equívoco. Um pouco mais acima de Arouca, em meio a um gramado, está o busto de Carlos Chagas. Por fim, em frente à entrada do Castelo, repousa o patrono da Fundação.

Em abril deste ano, Lucina e eu saímos do Quinino para cumprir missão inusitada: vestir de máscaras o trio Arouca, Chagas e Cruz. A colocação da proteção nos dois primeiros foi rápida e sem nenhuma dificuldade. O mesmo não posso dizer de Oswaldo Cruz. O busto está disposto em uma base com mais de dois metros de altura. Para botar a indumentária na cabeça de Oswaldo, eu tive que trepar na estrutura e me apoiar na imagem para conseguir amarrar o tecido. Um dos guardas que fazem a segurança do campus viu a cena e saiu correndo em minha direção. Ele gritava que o busto estava somente apoiado no pedestal e poderia cair. Agarrado à cabeça de Oswaldo eu gelei com o risco de danificar a imagem do patrono em um ato involuntário de vandalismo. Não aconteceu, felizmente, e o triunvirato de heróis da Fiocruz segue preservado e protegido do vírus.

Mas há um mistério ainda não desvendado no campus de Manguinhos. Onde estará o busto de Pasteur que ficava ao lado do Quinino? A obra desapareceu há cerca de dois anos, desfalcando as animadas rodas de conversa na hora do almoço dos nossos amigos do arquivo Wilson, Juliana e Maria Cristina. Imagino quantas histórias ao pé do ouvido Pasteur não escutou.

O fato é que as estátuas são parte do patrimônio público e devem ser preservadas. O vandalismo, sobretudo em nomes consagrados da nossa cultura, demonstra o desapreço pelo coletivo e a falência social, dimensionando a profundidade do buraco civilizatório em que nos metemos.

O que diria Quintana diante de tais atos?

Eu apostaria nessa frase: “O mais irritante em nos transformarem um dia em estátuas é que a gente não pode defender-se”.


Por Eduardo Müller

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