Eu espero pacientemente minha vez de ser atendido na fila do supermercado. Na minha frente, uma mulher carrega frutas, leite e frios na cestinha. Na outra mão traz uma criança, provavelmente seu filho, com idade em torno de sete anos. Mantenho a distância recomendada nos adesivos afixados no chão do mercado desde o início da pandemia, cerca de um metro e meio. O pequeno vira-se de costas para a provável mãe e me olha com curiosidade. Parece querer puxar algum assunto. Guardo o celular, não há sinal dentro do estabelecimento, e lhe faço um aceno, mexendo rapidamente a ponta dos dedos. Meu gesto é suficiente para que o garoto inicie uma conversa.
- Oi.
Respondo também com um “oi”. A mulher gira a cabeça para verificar com quem a criança está falando. Esboço um sorriso tímido escondido atrás da máscara, alargando os lábios sem abrir a boca. Ela repreende sem muita vontade o menino.
- Deixa o tio quieto.
O garoto não lhe dá ouvidos e insiste no papo.
- Onde você trabalha?
A mulher encabulada pede desculpas pela insistência do rapazote. Digo que não tem problema nenhum. Baixo os olhos em direção a ele e respondo:
- Eu trabalho em um castelo.
Os olhos do pequeno quase saltam do rosto, resultado da euforia causada pela minha resposta. Afinal, não é todo dia que se conhece alguém dizendo trabalhar em um castelo. Imagino que ele vá me perguntar se há príncipes e princesas no castelo. Ensaio mentalmente a réplica dizendo que no castelo trabalham cientistas.
- Tem jacaré no castelo?
A pergunta do menino me confunde. Que mané jacaré! E os príncipes, as princesas, as carruagens e os guardas com armaduras? Nada disso ele queria saber.
- Tem jacaré nadando no fosso embaixo da ponte?
Silêncio. Eu penso na fauna que habita o campus de Manguinhos. Lá temos variedade de borboletas, insetos e pássaros dançando entre a vegetação, que em alguns locais assemelha-se a uma mata urbana; micos correm entre as árvores e postes de luz, mas jacaré, definitivamente, não temos.
- Serve uma lagartixa preta? Pergunto.
As lagartixas pretas, ou taraguiras, são vistas com frequência pelo campus metidas em fendas no muro de pedras que dá acesso à praça Pasteur ou no calçamento de paralelepípedo que corta a Casa de Chá. Elas são maiores que as lagartixas comuns de apartamento. Um verdadeiro jacarezinho de parede, como dizem os manezinhos da ilha de Florianópolis. O menino parece não gostar da minha resposta.
- Castelo sem jacaré não é castelo.
Ele fecha a cara, voltando-se novamente para a mulher que agora está mais próxima do caixa do supermercado.
- No castelo tem cientistas.
Tento convencer o pequeno a se animar novamente.
Ele olha desconfiado.
- O que faz um cientista?
Eu respondo que o cientista produz remédios e vacinas para salvar as pessoas. O moleque vibra com minha explicação.
- É tipo o mago Merlin?
Penso um pouco antes de responder. Não quero decepcioná-lo.
- Sim, exatamente como o Merlin.
Respondo ao menino, torcendo para não ter nenhum cientista na fila do caixa.
A dupla, talvez mãe e filho, é atendida. Antes de irem embora, ele me olha e faz com as mãos um gesto circular, imitando o movimento de um mago em frente ao caldeirão. Eu solto um “abracadabra”, fechando e abrindo a mão rapidamente.
No outro dia, ao chegar na Fiocruz, eu estaciono o carro diante do castelo. Paro por um instante admirando imponente obra, e lembro da conversa com o menino. O castelo tem de fato sua magia. Quem sabe Merlin não dê umas voltas pelos seus corredores na madrugada, acompanhado de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas.
Por: Eduardo Müller (Ascom)
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